quinta-feira, 30 de julho de 2009

a prova de um professor de artes teólogo

Valdemar Schultz, mestrando

1. IMAGEM

O que torna uma imagem arte? O que torna uma obra de arte imagem? A ideia usual que se tem de uma imagem é formada por duas noções. Imagem pode ser a percepção da luz que se projeta na retina do olho, quando se fixa o olhar numa determinada coisa, ou a representação de algo concreto ou abstrato através de palavras e figuras, como na poesia, na literatura, na escultura, no desenho, na pintura, na fotografia, na tela do cinema, da tv. Nessa perspectiva, a imagem é algo que se reconhece no mundo real e está vinculada à memória, à lembrança que se tem de algo, como atualização da matéria no plano do pensamento, independentemente de sua presença real. A partir da perspectiva de Bergson, não existe matéria sem imagem. Não só isso, imagens criam matéria. Imagem não é uma representação, mas é o que se forma entre a lembrança virtual do passado e a percepção atual. Está entre a matéria e a representação. A matéria é tudo o que existe em extensão. O quadro de René Magritte, Isto não é um cachimbo, por exemplo, remete ao signo de um objeto que foi esculpido a partir de uma peça de madeira, sendo que a imagem da madeira só é possível depois do corte da árvore. A matéria vincula-se à memória, à lembrança do que foi percebido. Sem imagem não se apreende a matéria. É por meio de imagens que se toma conhecimento do mundo material. A imagem virtual incide sobre a matéria, mas não lhe restringe as possibilidades de criar significados. Em vez de representar algo, trata-se de criar uma imagem que viole o pensamento, não ideal, como em Platão, mas virtual, como em Deleuze.

Nessa perspectiva, a pintura de um cachimbo não representa um cachimbo, mas emite um signo da matéria pintura. Toda matéria está cheia de signos, mas não codificados. O signo está sempre aberto. Está entre a afecção da matéria extensa e a imagem virtual que o decifra. Para Deleuze, há um signo primordial, não platônico e não metafísico que não está nem na coisa nem naquele que o lê ou o decifra. Decifrar não é o mesmo que codificar ou significar. Os códigos não decifram e nem pertencem à matéria, criam uma outra coisa. A codificação envolve um processo de abstração de signos que forma a linguagem. Mesmo que signos e imagens sejam passíveis de decodificação, há sempre um regime aleatório que é alógico e opera por variações contínuas. A todo instante, as imagens criam os cortes no plano do pensamento para que o caos da vida seja suportável.

A arte não se articula por meio de enunciados, mas, de certa maneira, a obra enquanto imagem é reconhecida por meio de suas sobrecodificações. Embora uma imagem possa ser tomada como uma linguagem, um regime de signos decifráveis (conforme Hjelmslev), signos se articulam, transmitem signos e permanecem sempre abertos na obra. Signos adquirem significados quando são codificados pela cultura, integrando-se a um regime de uma língua, que se forma pela padronização da linguagem. Os códigos de uma língua se criam pelo constante uso de imagens-lembrança que incidem sobre as percepções atuais. Embora predomine esse movimento, o contrário também acontece, novas percepções modificam as imagens-lembrança existentes.

Diferente da linguagem, a imagem mantém sempre uma reserva de mistério. Como escapar das sobrecodificações de uma língua e manter os signos de uma obra abertos numa linguagem que tem como princípio o mistério? Imagens são formadas de percepções que se tornaram afectos, que implicam numa linguagem, mas que não são significados. As imagens reagem umas sobre as outras numa grande tela real, atualizando o virtual. Com as imagens se pensa e se aprende. Para Deleuze, todas as imagens são do desejo, capazes de sustentar a intensidade de uma vida.

3. NOTAS

Simulacro: A compreensão corrente que se tem de simulacro é platônica, pela qual vem a ser cópia da cópia, mas malfeita, demoníaca, vagamente semelhante ao modelo ideal de uma coisa. Para Nietzsche, simulacro não é cópia, mas a potência do falso. A aparência da coisa é a coisa mesma. Nessa perspectiva, Deleuze relaciona simulacro à fantasia. O plano do pensamento é simulacro. A ideia da coisa não está separada da coisa, nem é verdadeiro nem é falso. A dicotomia que se faz que é falsa. O que é verdadeiro e o que é falso é momentâneo. Não se trata de saber o que é uma obra, mas o que faz uma obra. O que é está sempre se tornando outra coisa.

Juízo estético: Juízo sentencia o que é bom e ruim. Institui e destitui uma obra, um artista, uma criação. Estético é o objeto ou a criação artística capaz de produzir movimentos e afectos que mobilizam os sentidos e a fruição. Para Kant, não existe um juízo de valor sem validade universal. Compreendendo que a moral judaica e cristã levou o julgamento ao infinito, Nietzsche evita qualquer princípio válido de juízo estético. Para ele, onde há juízo não há mais diferença. O juízo tira a potência de uma obra. Pode-se admitir somente um tipo de juízo em Nietzsche, a transvalorização do gosto. É preciso distanciar-se dos valores intrínsecos do gosto e da intuição, atravessá-los, para criar os próprios valores, envolvendo-se com o mistério da experiência estética. Nessa perspectiva, para Deleuze, trata-se de produzir o inconsciente maquínico do desejo, não opondo consciência e inconsciência, mas fazer surgir um consciente produtivo.

Gosto: O gosto não se explica, mas se debate. Mas o debate não envolve julgamento. Pelo contrário, a grande questão é tirar o gosto do tribunal do juízo. Em vez de julgar o gosto, trazê-lo para o campo do mistério da experiência estética com as surpresas do fora. O gosto é o início do julgamento. O gosto assume uma posição de valor que está relacionado ao tempo e ao espaço que se vive e que a obra pertence.

Humor: O humor se diferencia da ironia. Enquanto que este é parte da crítica, aquele anima o desejo e cria a vontade. Suspendendo toda a significação, abole profundidade e altura. O humor é a arte das superfícies e das dobras, faz do acontecimento puro um plano de composição para a criação. Humores artísticos expressam vontades deliberadas de gozo e de desejo, criam movimentos que afirmam a potência da criação.

Plano de imanência: É a imagem do pensamento. Não é um conceito, mas está povoado de conceitos. Enquanto os conceitos constituem-se a partir de sua singularidade, o plano de imanência é multiplicidade. Enquanto os conceitos remetem-se a acontecimentos, o plano de imanência é o seu horizonte. Não podendo ser confundido com os conceitos, é o que dá suporte e unidade aos conceitos, estabelecendo interconexões entre eles. Há vários planos, imagens que se sobrepõem, justapõem e coexistem, mas cada plano deve ser erguido separadamente. Os conceitos são criados e os planos são instaurados. Como imagem do pensamento, cada plano é um corte no caos, afirmando a potência de um Uno-Todo para que o pensamento não perca consistência diante do infinito, ao mesmo tempo em que não perca nada do infinito.

7. O frágil na arte contemporânea

É impossível traçar uma terminologia que dê conta do que vem a ser frágil na arte contemporânea. Ao inventar, o artista tem dificuldade de encontrar uma definição para o que está fazendo. O frágil na arte extrapola o contemporâneo, não só porque a obra é frágil, como também o pensamento que a cria. O que se entende por contemporâneo pertence a uma visão histórica de tempo que, sendo linear ou circular, prima pelo que é homogêneo. O pensamento histórico pressupõe uma sucessão de acontecimentos em cadeia. Na perspectiva da Diferença, com Nietzsche, com Deleuze, com Barthes, a arte é intempestiva. Não é nem histórica nem eterna, mas devir. Não segue a direção de uma flecha de acontecimentos históricos, nem busca uma boa direção. Nega a dialética e ri do bom senso em favor do nonsense, do atópico, do incorpóreo, do paradoxal. Em vez de profundidade, a superfície, a dobra. Intempestivo por ser turbulento, intensivo, caótico. A arte também é extemporânea. Busca um tempo outro. Vive fora das coordenadas passado, presente e futuro. Não projeta e nem serve de meio para um determinado fim a não ser ela mesma.

Sendo intempestiva e extemporânea, a obra de arte, nas suas condições de emergências, está ligada à cultura do artista, que predispõe fatores de fruição e contexto. A partir de uma perspectiva espacial e temporal, as obras de minimalistas, como Tony Smith, provavelmente não seriam reconhecidas como arte no Barroco, porque faltaria aos burgueses daquele tempo o conhecimento dos elementos formais que se estabeleceu na década 60. Mesmo assim, a qualidade de fruição da obra não é invalidada, independe de saber da data e do local da obra.

O frágil na arte não está relacionado com o material perene, nem com a efemeridade de sua duração, nem com a mistura de corpos e espaços com que são criadas as obras, mas por ser de sua natureza algo que não se sustenta a não ser como bloco de sensações. Toda matéria é expressiva. Para Deleuze, a finalidade da arte é arrancar do corpo da matéria os perceptos e os afectos, extraindo do bloco de sensações um puro ser de sensações. Como conservar as sensações de uma obra? Da impossibilidade da conservação das sensações vem o temor da morte formal da obra. A morte temida expressa o medo de que uma obra não tenha conteúdo ou que, com o tempo, morra o seu conteúdo, passando a ser um continente, pura variação. Os movimentos estéticos de uma obra são nômades. São movimentos de fuga. Somente permanece o que muda constantemente. Artaud, ao criar o conceito “corpo sem órgãos”, afirmou a fragilidade de todos os sistemas. Ao pretender acabar com qualquer forma de juízo, afirmou a fragilidade como potência em vez de falta. A fragilidade é reafirmada na perenidade da conservação das sensações que uma obra de arte produz. A todo tempo, tudo escapa, tudo foge, também o bom senso.

A dificuldade que o grande público tem em reconhecer uma obra de arte contemporânea vai além da fragilidade de seus meios e suportes. Normalmente as pessoas esperam encontrar nas exposições algo que não sabem fazer e que se diferencie do seu cotidiano. O que dizer da arte de George Maciunas, Flux Boxes, década 60 e Jean Otth, Autoportrait – série de perturbações no vídeo, 1972? Por ser misturado à vida, a arte produzida nesse tempo cria uma mistura de reinos, que leva a múltiplas respostas. É arte ou literatura? Arte postal ou happening? Um autor, coletivo ou público? No espaço sagrado, na rua ou na cibernet? Popular ou erudita? Fim dos movimentos ou somente diferença de estilos? Arte pela arte ou arte para o mercado? Em vez de “ou”, “ou”, “ou”, a arte que se pensa, a partir da Diferença, é “e”, “e”, “e”. O cotidiano misturado na arte e a arte no cotidiano. Do museu para a rua e da rua para o museu. Estetização total e desaparecimento da arte. Nem bela nem feia, nem cheia nem vazia, nem acúmulo nem esvaziamento, simplesmente uma mistura do que se compõe, uno e múltiplo, velocidade de partículas num plano de composição. Proliferação da arte no cotidiano, mistura de corpos, substâncias, estetização do mundo, ilusão, arte das aparências. A arte que faz desaparecer o objeto e o sujeito torna-se imagem pensamento, um elemento de transição, pura sensação, com e sem pretensões de transformar a realidade.

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